21/03/2010

O TUDO QUE EU CONTO

por Carlos Vazconcelos

...não narrei nada à toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Esse fraseado de Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas, bem serviria de epígrafe para o livro Fins d’águas, de Genuino Sales. Nem tirar nem pôr. Consistiria em pecado, assim como nas Sagradas Escrituras. Não se muda um til. A escrita é límpida porque oriunda de mãos artesãs, com vasto tirocínio nos meandros da palavra. Esse envolvente livro é o sertão contado em miúdos. Sente-se o cheiro da terra como nas canções de Gonzaga e Humberto Teixeira.
Fins d’águas é livro de hoje e de amanhã. De hoje, pela atualidade da concepção, da tessitura, e é póstero pelo registro sutil, mas vigoroso do universo sertanejo, pelo testemunho humano e testamento lingüístico. Trabalha no campo da tradição. É documento de memória, legado fundamental para o acervo do inolvidável. Se o autor não engendra palavras, feito Guimarães Rosa, prima por incorporá-las à memória coletiva e resguardá-las das intempéries.
O livro é telúrico, mas com um teor profundo de universalidade que só os grandes mestres são capazes de conceber. De suas páginas jorra um manancial de palavras e expressões genuinamente nordestinas. Não cabe aqui a obsoleta discussão regional x universal. O autor é consciente do seu testemunho (quase dizia protesto), não se rende a facilidades, prefere os valores superlativos. Não que tenha a deliberada intenção do combate, da ruptura contra a cultura globalizada (não é do seu feitio), mas simplesmente detém a plena vocação para o telúrico (e isto não é pouco), provando que sertão é (mesmo) dentro da gente. Fosse essa prosa lançada em plena geração de 30, estaria consagrada aos altos píncaros. Sendo lançada hoje, não é tardia, mas reabilitadora de um universo real, autêntico, co-existente com a cultura massificada.
Fins d’águas é obra fotográfica, não pela gratuidade descritiva, mas pela arquitetura minuciosa do ambiente regional e seu folclore, que impregna a memória ou o imaginário do leitor.
Genuino Sales transpõe para o papel a dicção inconfundível do exímio contador de causos que é, e adiciona a este predicado o estilo primoroso, esmerado, sem deixar de ser espontâneo.
A sensualidade empresta leve tempero a várias das narrativas (...os peitos vazavam do corpete e mostravam-se no busto como duas peças milagrosamente torneadas, com bicos morenos endurecidos pelo contacto da brisa.) O erótico e o humorístico se revezam, às vezes até se misturam, como no final do conto Nanico. A galeria de tipos talhada com precisão atesta a medida humana da obra. A violência, a religiosidade, o sobrenatural, o lírico, definem a tônica desse universo fantasticamente real que é o sertão. O sertão de Rosa, de Rachel, de Graciliano, o sertão genuíno. Podemos terminar como iniciamos, dando voz ao Riobaldo: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.

06/03/2010

O Vermelho e o Simples (Dois livros de Henrique Beltrão)



Por Carlos Vazconcelos

Faz de conta que era uma vez/
Nós fomos felizes para sempre.
(in Vermelho, p. 73)

A poesia de Henrique Beltrão é antes de tudo afeto, é o que pulsa no coração e ressoa na alma. Tudo dito com naturalidade. Daí os títulos Vermelho (leia-se à flor da pele) e Simples (leia-se translúcido). A ele só interessa cantar a essência poética, sem preocupações profundas com as formalidades que arruínam tantas intenções. Sua engenharia é simples sem ser simplória. Dialoga com músicos, sábios e múltiplos poetas, principalmente Vinícius: As rimas suas me banham a pele,/a língua sua é a mesma minha. Ele próprio não é apenas um poeta, mas um discípulo da poesia, com tudo o que nela há de humano e divino. Assim como Quintana, sabe que fora da poesia não há salvação. O fazer poético é sua oração, poesia nossa que estais em nós,/ pronunciado seja o vosso nome. Adverte, ainda: Se não houver música e poesia,/ao meu enterro eu não compareço. E sai destilando versos feito quem abre gaiolas. Tenta reter a vida para ganhar asas. A poesia é seu abrigo e seu horizonte.
Devem-se folhear as páginas dos livros de Beltrão como quem descerra janelas, de par em par, e espera não menos que a simplicidade da brisa, a integridade dos raios de sol, a beleza cotidiana do dia. O poeta passa ao largo dos spleens tão em voga nestes tempos ditos pós-modernos. Para ele poesia é celebração, de si, do outro, do mundo de fora e de dentro. Então construí um poema de vidro./Se o puseres ao sol verás a riqueza de suas matizes. Sua poesia é variada e delicada, o que pode levar o leitor a perceber um teor epicurista nas suas intenções. Ao mesmo tempo, o leitor vai se deparar com segredos subjacentes, que revelam uma boa dose de estoicismo, aprendido com os sábios que o poeta costuma visitar, muito bem exemplificado nos seguintes versos: A vida é um milagre. A morte é uma benção/para desfrutarmos do milagre./A morte nos grita: Viva! Viva bem. Um poeta nunca é uno, todo poeta é diverso. Vermelho e Simples são multicoloridos.
Beltrão não quer a poesia apenas para si, divide, soma, multiplica, semeia versos com alegria pela cidade inteira. A minha vida é toda pautada/na palavra e na interação com o outro. Mas o menestrel vai-se embora, vai se ausentar do corpo físico da cidade-namorada, embora saibamos que não há intervalo para o estado poético. Ele levará seus tesouros: a amada, o mar, o bar, o ar de Fortaleza. Voltará ainda mais rico, voltará ainda mais lírico dessa travessia.   
Mora no reino das palavras, mas justamente lá sabe encontrar o mestre silêncio: Nos meus pensamentos há silêncios de catedrais à meia-noite. Beltrão é um poeta que não perde a esperança. E sabe reparti-la com seus leitores.

O poeta é feito da sua gente.
Seus versos são filhos do seu lugar.
(in Simples, p. 81)

01/03/2010

Eco no Labirinto

-->Por Carlos Vazconcelos

Inicia-se o ano de 2006. Surpreendo-me lendo o romance O Nome da Rosa, do italiano Umberto Eco, num momento em que só aumenta, nas livrarias e bibliotecas, a procissão em busca do Código da Vinci, de Dan Brown.
Às vezes ando mesmo na contramão. E tenho manias muito pessoais: visitar cemitério em dias comuns, que não o de finados; preferir os templos vazios, às missas ou cultos; cascavilhar nas locadoras de vídeo não os lançamentos, mas os clássicos... Ler o Eco, em vez do Brown?
Na verdade, tentei ler O Nome da Rosa em 1991. Desci à biblioteca, abracei o livro e me dispus a decifrá-lo. Já adiantado na leitura, foi com decepção que verifiquei faltarem trinta páginas do volume. Devolvi-o à prateleira, assisti ao filme mais de uma vez e nunca mais quis saber do calhamaço.
Talvez eu demore quinze anos para decidir ler O Código da Vinci... e Anjos e Demônios... e Fortaleza Digital... Existem modismos, mesmo em literatura... Não sou obrigado a segui-los. Sou anacrônico. Não pela vaidade de ser. Mas por que nossa geração está cada vez mais ávida por novidades? Vivemos a era do descartável. A música de hoje não sobreviverá amanhã. Os derradeiros quintais deverão ser demolidos para os arranha-céus florescerem. As estrelas que se apaguem para a sobrevivência do neon. Hoje leio Eco, mas deveria ler Brown?
A edição (33ª) que tive em mãos era de 1991. Não havemos de nos assustar com tantas reedições, pois o livro de estréia de Eco foi realmente um êxito de vendas no mundo inteiro, um “sucesso unânime de crítica e público”, como veio anunciado na própria capa. Um best-seller (atente-se para a ambigüidade que essa expressão traduz).
O autor dialoga com o escritor inglês Conan Doyle, estabelecendo referências explícitas ao personagem Sherlock Holmes. O “herói” da narrativa é Guilherme de Baskerville (primeira referência óbvia), um investigador cerebral, capaz de deduzir com acerto o que não viu. Lógico, exato, cartesiano, politicamente correto e de fina ironia. No cinema, nenhum outro ator poderia encarná-lo melhor do que Sean Connery. Perfeito. Aliás, justiça seja feita, o filme (dirigido por Jean Jacques-Annaud) é uma obra-prima à parte. O parceiro de Guilherme é o noviço Adso, espécie de Watson, que vive os acontecimentos junto ao mestre e também se responsabiliza de narrá-lo à posteridade. O leitor encontrará apenas uma vez o epíteto consagrado: Elementar, meu caro Adso (Watson), embora ele haja se popularizado sem aparecer na obra original de Doyle.
A história é uma espécie de policial noir. Crimes misteriosos, insinuações eróticas, traições, cujo cenário é um mosteiro medieval da velha Itália. O livro é carregado de erudição (como não poderia deixar de ser, em se tratando de Umberto Eco), mas tem como leitmotiv a desmistificação religiosa, a denúncia da hipocrisia ocultada por trás dos hábitos, e principalmente, o fanatismo superando qualquer outro sentimento, inclusive o de Deus. Não seria justo negar que, em alguns momentos, o ritmo da narrativa é arrastado, monótono, bastante enfadonho, com incansáveis citações latinas e erudição escorrendo pelo ladrão. Algumas páginas parecem até desnecessárias para um enredo brilhante. Mas isso não ocorre também no Crime e Castigo, de Dostoiévski? No Guerra e Paz, de Tolstói? N’O Corcunda de Notre Dame, de Vítor Hugo? Não seria essa característica própria dos romances destinados a serem clássicos? Ou seriam prolixidades de estreante? Pensa-se até em desistir, mas a curiosidade é maior. Por que tantos crimes no ambiente sacrossanto? Onde há o crime deve haver o criminoso. Instala-se o suspense. 
Eco vai nos levando pelos labirintos do mosteiro, e das naturezas humanas, e da biblioteca, ponto crucial de toda a trama. Lá está Jorge de Burgos, personagem inspirado na figura de Jorge Luís Borges. O cego e seu labirinto. O minotauro à espreita... A biblioteca é um grande labirinto, signo do labirinto do mundo. Entras e não sabes se sairás.” (Eco, p.187). O labirinto é o símbolo mais evidente de estar perdido. (Borges).
O próprio enredo labiríntico da obra é intertextualidade. Dialoga com o conto A Biblioteca de Babilônia, de Borges. Eco valida o conceito do velho mestre de que livros podem nascer de livros, literaturas podem derivar de literaturas. Outro gênio, nosso Machado de Assis, também sabia estabelecer a perfeita diferença entre a recriação e a mera imitação.
Ah, e quanto ao título? A leitura não torna explícito. Que rosa? O conhecimento, a sabedoria, o sagrado...? Aí começa o mistério. O autor é semiólogo, homem preocupado com a representação dos signos. Possivelmente, o título foi inspirado em um dos versos de Romeu e Julieta: O que há em um nome? O que chamamos rosa cheiraria tão docemente com qualquer outro nome... Isto reforça ainda uma vez a tese da intertextualidade
Eco nos conduz às conseqüências do fanatismo, fio tenro entre a razão e a loucura. No fim, resta-nos a lição de cinco linhas apresentada em mais de quinhentas e sessenta páginas:
Teme, Adso, os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo, freqüentemente antes de si, às vezes em seu lugar. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.   
Em suma: Foge do presunçoso que detém a verdade absoluta.
Fica a pergunta: Ler ou não ler O Nome da Rosa? Aos mais exigentes, sim. Aos imediatistas, vejam o filme. Mas não esqueçam: a obra literária sempre superará qualquer adaptação, mesmo as superproduções cinematográficas. Ora, quem dera pudéssemos ler os clássicos sempre nos idiomas originais. Ah, quem dera!