12/11/2013

O lado A dos contos - Narrativas de Eugênio Leandro

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“Quando escrevo um conto procuro instintivamente que seja de algum modo alheio a mim enquanto demiurgo.” Esse preceito de Cortázar veio-me como primeira percepção ao iniciar a leitura dos contos de Eugênio Leandro, enfeixados sob o título A noite dos manequins. Eugênio não deixa manchões de autoria ao transferir aos narradores a responsabilidade de seus enredos, pois narra com notável espontaneidade e leveza. Seus personagens, como os de Juan Rulfo, por exemplo, habitam uma região determinada, mas vão além da paisagem, porque atingem universos interiores complexos, com aparência de comezinhos, e se nos apresentam com despretensão, sem melodrama ou afetação. Se para Vargas Llosa “toda vida merece um livro”, é fácil concluir que todo episódio pode instigar um conto, desde que trabalhado por mentes e mãos habilidosas.
Eugênio manipula com sutileza a narrativa. O leitor vai sendo vencido por pontos, vai envolvendo-se num clima que jamais promete temporais, mas sempre relampeja no final, com inferências reveladoras que dão gostoso tempero às histórias. No ato transitório de um parágrafo a outro, o narrador consegue conduzir o leitor do drama ao humor, demonstrando técnica e talento de contista maduro. Sua economia de meios empresta aos contos uma atmosfera prosaica, mas nunca simplória. A mão sempre leve na tessitura, disfarça bem a carga psicológica das situações, vividas por gente simples, do povo, o que se justifica com a epígrafe de entrada, tomada de André Gide: “Nunca tive gosto de retratar os triunfantes e os gloriosos deste mundo, mas antes aqueles cuja verdadeira glória permanece oculta.”
Para usar de uma velha expressão tão natural ao universo de Eugênio Leandro, que também é compositor e escreveu algumas das mais bonitas páginas do nosso cancioneiro popular, podemos dizer que Águas de Romanza é o “carro-chefe” desse volume de contos. Mas peças como A cômoda, A pequena, Teruel, Contita (um primor), encantam pela poesia e fisgam pela desenvoltura. E se por analogia pensássemos no livro como um long play? Se me perguntam que contos comporiam o lado B, eu diria que nesse caso melhor seria fazer analogia com o CD, pois todas as peças ficariam do mesmo lado, sem acepções. Feita essa brincadeira, que talvez as gerações maios novas nem compreendam, só tenho mais algo a dizer: A noite dos manequins agrada pela harmonia dos temas (unidade), pela versatilidade da linguagem (ritmo) e pela expressividade dos meios (estilo). Enfim, um livro brasileiramente universal.



Ouro Preto: poesia sem balangandãs


Por Carlos Vazconcelos

Conheci Mário Alex Rosa na cidade do Rio de Janeiro, em viagem a serviço do Sesc, cujo destino era Paraty e sua famigerada Festa Literária, a FLIP. Do grupo, com representantes de vários estados do Brasil, identifiquei-me de imediato com o Mário, mineiro, de fatídico sobrenome Rosa, o jeito manso de falar, quase inaudível de tanta discrição.
Mário parece carregar uma tristeza ancestral, colhida talvez nas paredes e ruas memoriais da sua São João Del-Rey natal. Mas não deve ser amargura, é apenas a angústia necessária de quem olha de soslaio o espetáculo frenético do mundo. É de outra estirpe a melancolia dos poetas. Em contrapartida a essa “tristeza”, o humor picante de quem não vê a vida apenas pelas órbitas dos olhos. Eu, mais efusivo e falante, entreguei-lhe Os dias roubados (Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2013), romance eu que acabara de tirar do forno. No dia seguinte, no ônibus, já a caminho de Paraty, muito discretamente ele se dirigiu à minha poltrona e me presenteou com o seu livro Ouro Preto (Belo horizonte: Scriptum, 2012). Soube depois que o livro estava na lista dos semifinalistas do Prêmio Portugal Telecom, um dos mais importantes da atualidade − onde também figurava a querida amiga Tércia Montenegro com o seu O tempo em estado sólido (São Paulo: Editora Grua, 2012). Mas acho que não foi ele quem me deu a notícia. Talvez tenha sido o Betinho, seu editor, que também conheci na FLIP, e com quem dividimos poéticos momentos de boemia regados a vinho, cerveja e umas poucas doses de Gabriela, a famosa cachaça da região, a mais doce e sedutora que já bebi. Betinho, sempre irrequieto, vibrava com o livro, manifestando o que poucos editores conseguem: o entusiasmo com a publicação do seu editado.
Ouro Preto é composto por 52 poemas, que qualquer crítico desavisado poderia denominar “minimalistas”, o que soará verdadeiro tão somente se pensarmos na dimensão física, no tamanho, nunca na essência de cada peça literária enfeixada no volume. Por esse ponto de vista, mínima será uma pérola que enjoou de ser concha; mínima será a nota musical que saltou para dentro de uma melodia; mínima será a flor que renunciou da solidão para ser buquê.
A poesia de Mário Alex Rosa jamais será derramada. É centrípeta. Seus poemas convergem para o âmago do ser. Zomba da ordem: “Aqui cada palavra é cadafalso. Por isso enforco versos e métrica. Fico livre de outras forcas.” (p. 35) O poeta Mário se perde e se acha nos casarões de Ouro Preto, se esquiva pela rua Direita, se desvia pela rua da Escadinha, entra na capela do Padre Faria, mas não é a cidade concreta que incansavelmente procura. O eu-lírico está perdido na cidade secular, catando instantâneos: a saia rosa que acorda a manhã, a branca de neve que o poema ocultou, a ponta do xale que entrou na igreja, enovelando o amor.
O poeta “enxerga a noite no dia e o dia na noite”, “como o vidro de gato dos olhos dela”. Como guia, anda perdido por opção e engabela o leitor que busque uma Ouro Preto de pedra. É a Ouro Preto etérea/eterna que o poeta persegue e nos dá: “Não tenho em mim/qualquer outra cidade,/senão a tua, que me atravessa/feito espada na bainha./Entro nela por dentro/e aceito o medo de sabê-la por fora.” (p. 58)
No itinerário de Ouro Preto nos desencontramos do amor para tropeçarmos com ele logo na próxima esquina, entre o sagrado e o profano: “Já não posso me ater a esse lugar/onde a palavra amor estancou/entre o beco e a igreja.” (p. 57)
O leitor tenta seguir o poeta pelas calçadas da vetusta cidade, mas o poeta está pedido de amor. “Uma ponte é o encontro de duas pontas. Eu continuo num extremo delas.” (p. 13) Aliás, o amor é um personagem irrequieto que perambula em Ouro Preto à procura de pretextos. E isso é tudo o que o poeta deseja. E se consola na solidão dos versos: “Deixe o amor ausentar-se:/Fagulha, do pedaço de unha/Que feriu a imperfeição./Recolha-se nos seus escritos./Fique assim a ver navios./O amor não tolera quem compreende./Mata antes de morrer./Se viver, peça a sua dor de volta.”
Ouro Preto é uma mulher misteriosa que dorme quando o poeta acorda. “Aprendi mais uma vez na falta.” (p. 26)
A voz baixa e contida de Mário Alex é altissonante em versos. E só corresponde ao ouvido quando dita plenamente em oração: “Sempre quis ler para você/o poema ‘São Francisco de Assis’./Era para lhe dizer que a crença na arte /é uma forma de crer na mão humana./Mas você rezava por nós /imersa em tanto silêncio, que naquele momento pensei escutar /que Deus acordaria o mundo./Perdão por acreditar no seu amor.”
Nosso poeta não apenas canta Ouro Preto, ele a encanta. Cantar uma cidade em versos é povoá-la de ausências, porque o que vale mesmo é a procura. Assim como Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, o leitor vai nos encalços da poesia em busca de sua Nise inacessível, de sua Marília inatingível, de uma musa ausente (ou seria onipresente?) que se esconde em algum canto da cidade inesquecida. Parece dialogar com Drummond: “São palavras no chão/e memória nos autos./As casas inda restam,/os amores, mais não.”
O livro diz muito com seus silêncios e hiatos e cada palavra tem dois gumes: um de nuvem outro de abismo. “É preciso rezar com raiva.” (p. 44). Ouro Preto é a própria matéria da poesia; não se encontra ali balangandãs.