12/11/2013

O lado A dos contos - Narrativas de Eugênio Leandro

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“Quando escrevo um conto procuro instintivamente que seja de algum modo alheio a mim enquanto demiurgo.” Esse preceito de Cortázar veio-me como primeira percepção ao iniciar a leitura dos contos de Eugênio Leandro, enfeixados sob o título A noite dos manequins. Eugênio não deixa manchões de autoria ao transferir aos narradores a responsabilidade de seus enredos, pois narra com notável espontaneidade e leveza. Seus personagens, como os de Juan Rulfo, por exemplo, habitam uma região determinada, mas vão além da paisagem, porque atingem universos interiores complexos, com aparência de comezinhos, e se nos apresentam com despretensão, sem melodrama ou afetação. Se para Vargas Llosa “toda vida merece um livro”, é fácil concluir que todo episódio pode instigar um conto, desde que trabalhado por mentes e mãos habilidosas.
Eugênio manipula com sutileza a narrativa. O leitor vai sendo vencido por pontos, vai envolvendo-se num clima que jamais promete temporais, mas sempre relampeja no final, com inferências reveladoras que dão gostoso tempero às histórias. No ato transitório de um parágrafo a outro, o narrador consegue conduzir o leitor do drama ao humor, demonstrando técnica e talento de contista maduro. Sua economia de meios empresta aos contos uma atmosfera prosaica, mas nunca simplória. A mão sempre leve na tessitura, disfarça bem a carga psicológica das situações, vividas por gente simples, do povo, o que se justifica com a epígrafe de entrada, tomada de André Gide: “Nunca tive gosto de retratar os triunfantes e os gloriosos deste mundo, mas antes aqueles cuja verdadeira glória permanece oculta.”
Para usar de uma velha expressão tão natural ao universo de Eugênio Leandro, que também é compositor e escreveu algumas das mais bonitas páginas do nosso cancioneiro popular, podemos dizer que Águas de Romanza é o “carro-chefe” desse volume de contos. Mas peças como A cômoda, A pequena, Teruel, Contita (um primor), encantam pela poesia e fisgam pela desenvoltura. E se por analogia pensássemos no livro como um long play? Se me perguntam que contos comporiam o lado B, eu diria que nesse caso melhor seria fazer analogia com o CD, pois todas as peças ficariam do mesmo lado, sem acepções. Feita essa brincadeira, que talvez as gerações maios novas nem compreendam, só tenho mais algo a dizer: A noite dos manequins agrada pela harmonia dos temas (unidade), pela versatilidade da linguagem (ritmo) e pela expressividade dos meios (estilo). Enfim, um livro brasileiramente universal.



Ouro Preto: poesia sem balangandãs


Por Carlos Vazconcelos

Conheci Mário Alex Rosa na cidade do Rio de Janeiro, em viagem a serviço do Sesc, cujo destino era Paraty e sua famigerada Festa Literária, a FLIP. Do grupo, com representantes de vários estados do Brasil, identifiquei-me de imediato com o Mário, mineiro, de fatídico sobrenome Rosa, o jeito manso de falar, quase inaudível de tanta discrição.
Mário parece carregar uma tristeza ancestral, colhida talvez nas paredes e ruas memoriais da sua São João Del-Rey natal. Mas não deve ser amargura, é apenas a angústia necessária de quem olha de soslaio o espetáculo frenético do mundo. É de outra estirpe a melancolia dos poetas. Em contrapartida a essa “tristeza”, o humor picante de quem não vê a vida apenas pelas órbitas dos olhos. Eu, mais efusivo e falante, entreguei-lhe Os dias roubados (Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2013), romance eu que acabara de tirar do forno. No dia seguinte, no ônibus, já a caminho de Paraty, muito discretamente ele se dirigiu à minha poltrona e me presenteou com o seu livro Ouro Preto (Belo horizonte: Scriptum, 2012). Soube depois que o livro estava na lista dos semifinalistas do Prêmio Portugal Telecom, um dos mais importantes da atualidade − onde também figurava a querida amiga Tércia Montenegro com o seu O tempo em estado sólido (São Paulo: Editora Grua, 2012). Mas acho que não foi ele quem me deu a notícia. Talvez tenha sido o Betinho, seu editor, que também conheci na FLIP, e com quem dividimos poéticos momentos de boemia regados a vinho, cerveja e umas poucas doses de Gabriela, a famosa cachaça da região, a mais doce e sedutora que já bebi. Betinho, sempre irrequieto, vibrava com o livro, manifestando o que poucos editores conseguem: o entusiasmo com a publicação do seu editado.
Ouro Preto é composto por 52 poemas, que qualquer crítico desavisado poderia denominar “minimalistas”, o que soará verdadeiro tão somente se pensarmos na dimensão física, no tamanho, nunca na essência de cada peça literária enfeixada no volume. Por esse ponto de vista, mínima será uma pérola que enjoou de ser concha; mínima será a nota musical que saltou para dentro de uma melodia; mínima será a flor que renunciou da solidão para ser buquê.
A poesia de Mário Alex Rosa jamais será derramada. É centrípeta. Seus poemas convergem para o âmago do ser. Zomba da ordem: “Aqui cada palavra é cadafalso. Por isso enforco versos e métrica. Fico livre de outras forcas.” (p. 35) O poeta Mário se perde e se acha nos casarões de Ouro Preto, se esquiva pela rua Direita, se desvia pela rua da Escadinha, entra na capela do Padre Faria, mas não é a cidade concreta que incansavelmente procura. O eu-lírico está perdido na cidade secular, catando instantâneos: a saia rosa que acorda a manhã, a branca de neve que o poema ocultou, a ponta do xale que entrou na igreja, enovelando o amor.
O poeta “enxerga a noite no dia e o dia na noite”, “como o vidro de gato dos olhos dela”. Como guia, anda perdido por opção e engabela o leitor que busque uma Ouro Preto de pedra. É a Ouro Preto etérea/eterna que o poeta persegue e nos dá: “Não tenho em mim/qualquer outra cidade,/senão a tua, que me atravessa/feito espada na bainha./Entro nela por dentro/e aceito o medo de sabê-la por fora.” (p. 58)
No itinerário de Ouro Preto nos desencontramos do amor para tropeçarmos com ele logo na próxima esquina, entre o sagrado e o profano: “Já não posso me ater a esse lugar/onde a palavra amor estancou/entre o beco e a igreja.” (p. 57)
O leitor tenta seguir o poeta pelas calçadas da vetusta cidade, mas o poeta está pedido de amor. “Uma ponte é o encontro de duas pontas. Eu continuo num extremo delas.” (p. 13) Aliás, o amor é um personagem irrequieto que perambula em Ouro Preto à procura de pretextos. E isso é tudo o que o poeta deseja. E se consola na solidão dos versos: “Deixe o amor ausentar-se:/Fagulha, do pedaço de unha/Que feriu a imperfeição./Recolha-se nos seus escritos./Fique assim a ver navios./O amor não tolera quem compreende./Mata antes de morrer./Se viver, peça a sua dor de volta.”
Ouro Preto é uma mulher misteriosa que dorme quando o poeta acorda. “Aprendi mais uma vez na falta.” (p. 26)
A voz baixa e contida de Mário Alex é altissonante em versos. E só corresponde ao ouvido quando dita plenamente em oração: “Sempre quis ler para você/o poema ‘São Francisco de Assis’./Era para lhe dizer que a crença na arte /é uma forma de crer na mão humana./Mas você rezava por nós /imersa em tanto silêncio, que naquele momento pensei escutar /que Deus acordaria o mundo./Perdão por acreditar no seu amor.”
Nosso poeta não apenas canta Ouro Preto, ele a encanta. Cantar uma cidade em versos é povoá-la de ausências, porque o que vale mesmo é a procura. Assim como Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, o leitor vai nos encalços da poesia em busca de sua Nise inacessível, de sua Marília inatingível, de uma musa ausente (ou seria onipresente?) que se esconde em algum canto da cidade inesquecida. Parece dialogar com Drummond: “São palavras no chão/e memória nos autos./As casas inda restam,/os amores, mais não.”
O livro diz muito com seus silêncios e hiatos e cada palavra tem dois gumes: um de nuvem outro de abismo. “É preciso rezar com raiva.” (p. 44). Ouro Preto é a própria matéria da poesia; não se encontra ali balangandãs.


15/02/2013

Á guisa de carta ou A fotossíntese poética


Fortaleza, Carnaval de 2013

Carlos Nóbrega, nobre Xará,

Seu novo livro, Lápis branco, já me conquistou lugar na estante. Lá não estará sozinho, mas em família. Tem por companhia toda a irmandade: A sono solto, Outros poemas, Breviário, Árvore de manivelas, O quanto sou e 8Verbetes. Nessa prateleira só mora gente de ótima estirpe: Carlos Drummond (o outro xará), Manuel Bandeira e Manoel de Barros, João Cabral, Mário Quintana e Augusto dos Anjos. Não precisa se encabular, que ali também residem dois conterrâneos: Francisco Carvalho (com seus títulos e “tons e dons geniais”) e O Poeta de Meia-Tigela (com seu concerto desconcertante de tão bom). Nesse momento, assim se resume minha prateleira principal de poetas do Brasil.
Com Lápis branco você reafirma esse lirismo carregadinho de reflexões próprio de sua estética e do seu estar no mundo. Como Manoel de Barros, você sabe arqueologicamente escovar as palavras para descobrir que ecos ainda guardam. Feito isso, reveste-as de brilho novo e, mesmo sem se esforçar para expô-las na vitrine, elas reluzem e aliciam o leitor, apenas aqueles que “sofrem” de fotossíntese. Explico: Aprendi erradamente na escola que a fotossíntese é um fenômeno exclusivamente vegetal. Mas hoje compreendo: minha professora de Ciências não tinha o hábito de ler poesia. Eu a perdoo. É feito padre: ensina a casar, mas não casa nunca. Sofrer de fotossíntese é ter a lua por companheira de viagem; é entrar naquela casinha sem número (a avozinha da rua) que distribui humanidade, e tomar um café com pão; é ajeitar a alma dentro da blusa e sair à cata de versos no bulício da cidade grande; é entender o estranho e delicioso esperanto das mulheres; é saber esperar na fila da padaria e da vida e nesse intervalo ser distraído pela poesia; é achar fatigante a ideia de desaparecer (inevitavelmente) um dia para sempre; é ser encontrado morto dentro dos olhos vivos da amada; é andar sozinho em procissão contando os passos entre um poste e outro (feito aquele personagem de Orígenes Lessa), é não ligar se pousem moscas ou olhares sobre a felicidade de fiar poemas. Enfim, é escrever com lápis branco sobre papel branco para que só captem a mensagem aqueles indivíduos “clorofilados”, os que sofrem de fotossíntese poética.
Afinal, não foi Mário Quintana que disse que “cada poema é uma garrafa de náufrago... quem a encontrar, salva-se a si mesmo?”
Sei que você não acredita que a poesia possa salvar alguém, mas que ajuda a não doer, ah, disso nós temos certeza.

Abraço do Carlos Vazconcelos.

21/07/2011

Atualidade de um clássico





por Carlos Vazconcelos

Um clássico sempre nos surpreende. Se não revela as grandes verdades que almejamos, enleva-nos com pequenos achados. Na busca de abrir caminho através da densa barreira dos Livros Que Não Li ou dos Livros Que, Se Eu Tivesse Mais Vidas Para Viver, Certamente Leria de Boa Vontade (como sugere Italo Calvino), abri esta semana as páginas de A Arte Poética de Horácio. Na realidade, uma epístola escrita aos Pisões com o intuito de prestar aconselhamentos quanto ao ato criador. Com o tempo consolidou-se, do mesmo modo que a outra Arte Poética, a de Aristóteles, como interessante manual de estética aplicada à literatura e, particularmente, ao teatro.


A Poética de Horácio é o manifesto máximo do classicismo contra qualquer tipo de vanguarda, pois para ele liberdade é exceção, não a regra. Numa época em que se busca um vanguardismo a qualquer custo, um desejo convulsivo de inovar a arte e seus mecanismos, mesmo que o conteúdo soe inválido e a poética estéril, Horácio, como um bom clássico, é atualíssimo quando adverte: “Vós, que escreveis, tornai a matéria igual às vossas forças e pesai longamente o que vossos ombros se recusam a carregar”; ou quando indaga: “Começou-se a moldar uma ânfora, por que ao girar da roda saiu um pote?”

Muitos artistas hoje não compreenderam as lições de seus mestres. Buscam a ruptura, mas não percebem que em arte toda transgressão deve ser passageira, isto é, durar enquanto transgressão. Quebrar paradigmas às vezes é essencial, mas o ato de ruptura não pode, por si só, virar estética. Quando isso acontece, os transgressores provam do próprio feitiço. Concordo com o escritor e crítico Affonso Romano de Sant’Anna, quando afirma que “a melhor homenagem que podemos fazer aos mestres contestadores de ontem, é contestá-los hoje.” Não foi à toa que Marcel Duchamp (charlatão e gozador, para uns; rei da vanguarda artística, para outros) afirmou: “Joguei o urinol na cara deles como um desafio e agora eles o admiram como um objeto de arte.” Não se deve empurrar gato por lebre. O ato de ruptura não se dilui em estética, apenas a provoca. A Poética de Horácio amolda-se perfeitamente à sexta definição de Calvino: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.”

Com base no dualismo de Platão (esteticismo/eticismo), Horácio pregava que a arte tinha duas finalidades: agradar e educar. “Não basta que os poemas sejam belos, é preciso que sejam doces”, afirma ele. Para o esteticismo a função da arte é ser arte; para o eticismo a função da arte é ser útil. Nesse ponto, dissocia-se do pensamento de Aristóteles. O autor da outra Poética valoriza a arte como imitação e aceita que o feio na natureza pode agradar na arte, como por exemplo um cadáver bem pintado. Na poética de Horácio, há um permanente paralelo entre a pintura e a literatura, e ele inclusive admite que pintores e poetas têm o poder de ousar, mas a razão deve dominar a fantasia e o sentimento. O artista que pretende variar com prodígios um tema uno, termina por pintar delfins nas selvas e javalis nas ondas. Um poema concebido sem critérios estéticos, onde apenas o engenho participe e não a arte, pode assemelhar-se ao quadro de um pintor que quisesse ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, resultando no ridículo quadro da mulher-cavalo-ave-peixe, o que nos faz deduzir que o Surrealismo seria a estética inversamente proporcional ao classicismo de Horácio. Mais ainda: Seria sua inimiga mortal. Não que condenasse o fantástico, onde se misturam coisas falsas e coisas verdadeiras, mas a falta de coerência.

Dispensados certos radicalismos e outros aspectos que nos soam hoje como anacrônicos, há muita atualidade nas propostas do autor grego. Ele aconselha que toda obra literária seja submetida aos ouvidos de um crítico severo e depois permaneça guardada até o nono ano, e justifica: “O que não tenhas editado, te será permitido destruir. As palavras soltas não podem tornar.” Critica os poetas romanos que abandonaram as pegadas dos gregos, principalmente de Homero, criador da fórmula perfeita dos hexâmetros com que escreveu a Odisseia, e dá mais esta lição atualíssima e permanente: “Nem o Lácio seria mais potente pelo valor e pelas armas gloriosas do que por sua língua, se o trabalho lento da lima não aborrecesse a todos os nossos poetas. Vós, ó sangue de Pompílio (1), repreendei o poema que muitos dias e muitas correções não desbastaram e não burilaram por dez vezes com a unha aparada.”

No que diz respeito ao teatro, sua pretensão de “pureza” é ainda maior, pois condena o gênero que descamba em outro, como a epopeia retorcida em comédia por falta de perícia dos atores ou do autor do texto. Não lhe agradam esses dois gêneros. Prefere o drama satírico, espécie de moderador entre o riso e o siso. Consagrado como poeta do amor e da paz, rejeitava o espírito guerreiro do romano, condenando por consequência cenas violentas no teatro, boas para serem contadas, jamais para serem representadas, como por exemplo Medeia matando os filhos. Em outras palavras, o classicismo nada sabe do naturalismo. É tal o radicalismo de Homero que ele considerava impraticável jovens representarem papéis de velhos ou vice-versa. Podemos então concluir que a Poética de Horácio amolda-se também ao preceito número 14, de Calvino: “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.”

Por fim, comungo ainda com Calvino para enfatizar a importância de se ler propriamente as obras: “A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário” e a Todorov: “Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos. O Ensino Médio, que não se dirige aos especialistas em literatura, mas a todos, não pode ter o mesmo alvo; o que se destina a todos é a literatura, não os estudos literários; é preciso então ensinar aquela e não estes últimos.”

Afinal, Horácio é clássico por que é atual ou é atual por que é clássico? Ora, a questão é tão imperativa quanto ler esta resenha e não ler o livro do qual ela trata. Portanto, quem deseja compreender A Poética de Horácio, deve ir imediatamente à livraria ou a biblioteca, e não se contentar com apreciações como esta.

[1] Os Pisões, a quem a carta de Horácio se destina, pretendiam-se descendentes de Numa Pompílio, segundo rei de Roma.

Bibliografia

CALVINO, Italo. Se um viajante numa manhã de inverno. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Planeta De Agostini, 2003.

__________. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.

SANT’ANNA. Affonso Romano. Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2003.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 2. ed. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

TRINGALE, Dante. A arte poética de Horácio. São Paulo: Musa Editora, 1993.

26/07/2010

TRAPIÁ - Caio Porfírio Carneiro




Por Carlos Vazconcelos
Publicado pela primeira vez em 1961, Trapiá é um livro de contos com estética próxima à novela, pois os personagens e o ambiente são recorrentes e as temáticas se interligam, dando unidade ao volume. As histórias se desenrolam na cidade de Trapiá e seus arredores: Taimbé, Pitombeira, Coités. Esta obra de estréia de Caio Porfírio Carneiro é regionalista desde o título (de pé de trapiá; trapiazeiro). Não no sentido reducionista, mas no que se refere aos tipos, ambientes e costumes de uma dada região do Nordeste do Brasil. É, não obstante, respaldada no princípio de toda grande literatura, ou seja, nos seres humanos e seus dramas diários, suas vicissitudes, suas artimanhas. Espelham as vivências do autor na fazenda Pau Caído, interior do Ceará. Cada um dos onze contos é obra-prima à parte. Cada palavra no seu devido lugar, não sobram arestas, os diálogos são bem colocados, há grande riqueza de expressões interioranas: pescoço escangotado, areando talher, meter os pés, canelau, coração desembestado, e tantas outras.
O autor inicia com o apêndice Como nasceu Trapiá (não a obra, mas o lugarejo): Um dia apareceram uns retirantes, dizem que vindos de Pernambuco, e armaram uma venda ao pé do trapiazeiro. (...) Negra velha Aparecida conta uma história desconforme: a árvore se encantara. Para o violeiro Zé de Melo, ela fora derrubada a mando do vigário do Coité, para levantar uma capela. (...) Assim veio ao mundo a Vila do Trapiá.
Nas narrativas de Trapiá predominam os diálogos, sempre muito bem engendrados. É presença constante o universo infantil, vítima de pequenos dramas ou de grandes tragédias, em contraponto ao mundo dos adultos, recheado de normas, costumes e leis próprias. Enfim, Trapiá é um fiel testemunho da civilização do sertão. Não um sertão demarcado no tempo e no espaço, mas um sertão perene, que sempre existirá enquanto houver tradições literárias como a de Caio Porfírio Carneiro.

ANÁLISE INDIVIDUAL DOS 11 CONTOS
1. Milho Empendoado
Há um quê de contestação neste conto, uma disfarçada denúncia da milenar contenda entre o explorado e o explorador. Há também a sabedoria do sertanejo. Chico começa a roubar as galinhas do coronel Camilo, seu patrão. O objetivo é fazer a canja para a Maria, a esposa que se encontra de resguardo. Contestado pela sogra, Chico se justifica:
Ele está lá, no bem bom (...) Não estou roubando. É precisão, você sabe...
Coronel Camilo, pressionado pela esposa, Rita, resolve solucionar o caso com a rara sabedoria do homem sertanejo, poderoso, mas que prefere dissolver pacificamente os pequenos conflitos.
− Tem gente metendo a mão no galinheiro, Chico.
− Não é raposa, Coronel?
− Que raposa, homem. Aqui lá tem raposa! Quero que você dê uma pastorada.
Chico ainda tentou repetir o roubo, mas não se sentiu seguro. Instigado pela sogra e pela mulher, convida o Coronel para ser padrinho do recém-nascido. O coronel aceita e pergunta de supetão:
− E as galinhas, Chico. Nem sinal do guabiru, hein?
− Não vi ninguém, Coronel...
A sós com a velha Rita, o Coronel explica:
− A gente dá fim a guabiru, Rita, é mandando ele correr atrás do ladrão.

2. O Pato do Lilico
História de injustiça e autoritarismo. Outra forma de poder, o do adulto sobre a criança. Lilico vai à feira de Coité com o austero pai (Quando o chamava era aos gritos, por qualquer besteira soltava o berro.) Lilico quase nem pregou os olhos, pensando no passeio (Viu a cidade e se esqueceu do sol, do sono e da sede.) Era véspera de Natal. A meninada da cidade brincava, cada brinquedo que era uma maravilha.
− Tava vendo aquele brinquedo, pai...
− Te trouxe foi pra isso?
O brinquedo que mais encantou Lilico foi o pato que pulava e andava.
− Tu nunca viu pato, menino?
O pai deixa o menino comendo rapadura, pastorando os grajaús com coco e sal. Empolgado com os brinquedos, Lilico se aproxima da meninada da cidade, mas é rachaçado. O homem bem vestido, charuto no queixo, percebe a desolação do menino e o leva à loja:
− Você quer um brinquedo desse, garoto?
Dentro da loja, o menino toma um susto com a figura do Papai Noel, a barba branca, muito comprida. Segurou o brinquedo e saiu caminhando de costas, sem acreditar. Ao voltar, não encontrou os grajaús. O pai aparece indignado pela desobediência do filho e entende que o brinquedo foi fruto de roubo. Por mais que o menino se explicasse ele não se convencia.
− Pai...
− Eu te racho de peia, peste.
Para maior desespero, o pai pisa o brinquedo e atira o resto no lixo. Em casa, a mãe protege o menino da surra, mas também não acredita na versão dele:
− Não faça isso outra vez não, meu filho. Nosso senhor castiga.

3. O Gavião
Outra vez a temática infantil. O amor de Beto pelos pássaros e a interessante reversão do ódio em amor. Um faminto gavião ameaça a paz da fazenda. Beto se desespera e convoca o pai para dar cabo do possível predador de seu canário de estimação. João Raimundo falha.
− Deixa, Beto. Ele volta.
No dia seguinte, Beto vai alimentar o canário e percebe a gaiola vazia. O gavião não perde a oportunidade e captura o pássaro doméstico. O menino torna a pedir socorro ao pai, que prepara a espingarda, mas falha pela segunda vez. (O gavião ajeitava-se sobre a presa... as bicadas partiam violentas...) A mãe procura consolar o filho:
− Chore não, Betinho. Seu pai lhe dá outro.
Beto se revolta com tamanha injustiça da natureza e passa dias inconsolável. Mas começa a observar a elegância e coragem do gavião e o ódio se converte em admiração. Seu sonho agora é ganhar um gavião. (Não queria mais o canário que viria do Trapiá. Canário dava muito trabalho.)
− Que conversa é essa, Beto?
No dia seguinte, estava lavando o rosto, na cozinha, quando ouviu o tiro:
− Pronto, meu filho. Dei fim ao infeliz.
Beto tomou chegada devagarinho, o bolo subindo para a goela. A ave estremecia, o sangue pintando as penas. Uma beleza de ave, o gavião. Mais bonita que aquela não haveria.
O pai entra, satisfeito, assobiando. Beto fica lá fora, soluçando a morte do seu mais novo objeto de adoração.
4. A Dívida
Acertar contas, lavar a honra, faz parte do código de ética do homem sertanejo e é uma constante na literatura de temática regionalista. Esta terceira narrativa de Trapiá conta o desespero e a fuga, em pleno meio-dia, de um homem que se supõe assassino por haver reagido a uma agressão. Recorre à ajuda do amigo:
− Fiz uma desgraça, Gerardo.
− Mas me conta logo, rapaz. O que foi que você fez?
− Matei o seu Queiroz, na feira do Trapiá.
− Foi uma rixa, Pereira?
− Ele me devia aquele dinheiro, como você sabe... Ele primeiro me xingou. Fiquei no meu canto quieto. Aí ele xingou a Carminha e eu perdi a cabeça...
Gerardo resolve descer à cidade para investigar o caso e pede ajuda do Dr. Soares, candidato da oposição:
− Será que ele dá um jeito?
− Tem que dar. Você não é eleitor dele?
No fim a surpresa. Quando o suposto matador esperava visita do delegado, recebe a notícia do amigo:
− O homem está vivo, Pereira. Tava lá conversando e andando.

5. Come Gato
Um dos momentos mais altos do livro, este conto mostra que nenhum ser é tão desprezível ao ponto de ser subestimado. Come Gato é um mendigo incapaz de reagir aos insultos da molecada, mas com coragem suficiente para assassinar, de peito aberto, o perigoso Tacanha, cabra valentão que, a mando do Coronel Aparício, se atrevera a surrar o Coronel Leocádio. Este, o único homem da cidade que não desprezava o Come Gato, ou melhor, o único homem que, a despeito da própria importância na região, dava-lhe guarida, protegia-o e tratava-o pelo nome de batismo:
− Boa tarde,Olavo.
− Não ligue para isso não, Olavo. Brincadeira de menino.
− Já comeu, Olavo?
− Vá á cozinha e fale com a Guilhermina.
Come Gato, imbuído pelo sentimento de lealdade, caminhou quatro léguas a fim de cometer a vingança silenciosa.
− Mas seu Tacanha, o que vosmecê fez acha que tá direito?
− Veio pra me dizer isso? Quer um ensino, porqueira?
− Vá rezando, seu Tacanha, queu vou lhe despachar...
− Vosmecê fez besteira, seu Tacanha. Em Coronel Leocádio ninguém encosta a mão.
Limpou a faca na roupa da vítima, já quieta, olhos vidrados...
O Coronel, na sala, abraçava os amigos, peito lavado:
− Já vi que tenho amigo nas Contendas. Me disseram que o cabra morreu na porta de casa.

A vida volta à normalidade. A autoria do assassinato continua encoberta. Da esquina, Come Gato avista o Coronel Leocádio na espreguiçadeira:
− Boa tarde, Coronel...
− Boa tarde, Olavo.
− E a meninada, Olavo?
− Importo não, Coronel...
− Já comeu hoje, Olavo? Vá falar com a Guilhermina.
− Com sua licença, Coronel...

6. Mata-pasto
Mais um tácito confronto ente classes, demonstrando-se o eterno abismo entre proprietário e empregado.
O mata-pasto cerrado, dando nos joelhos. Tanto Chico capina quanto o mato volta crescer, favorecido pela estação das chuvas. Coronel Henrique sentencia:
− Este inverno deixo ele crescer. Quero ver até onde vai o mato.
− Faz bem, Coronel.
Chico vê no crescimento do mato a oportunidade que lhe faltava para entrar no casarão, esconder-se atrás do depósito de farinha e se apossar da lata de moedas (Enterraria a lata alguns dias para ninguém desconfiar. Dez anos naquela vida. Trabalhando feito burro sem mãe. Aquele dinheiro iria auxiliá-lo muito.) Disse para a mulher, Joana, que ia viajar para o Trapiá.
Preparou-se para entrar, na calada da noite, mas sentiu antes o espinho no dedão do pé direito. Viu sangue. Uma moleza começou a tomar conta do seu corpo. Levantou-se para espantar a morrinha. A dor subiu para a perna. Tornou a sentar-se. Tentou levantar-se e caiu. A perna dormente. ”Parece que foi cobra.” Ouviu a voz do Coronel ali a poucos metros, a muitos metros, bem perto, muito distante...
− Acho que a Clotilde tem razão. Vou mandar o Chico amanhã corar esse mato. A muriçoca tá demais...
Quando o dia amanheceu, o corpo de Chico estava estirado sobre o capim.
− Eu não dizia, Henrique? Você é maluvido...
− Que diabo foi fazer ali o Chico?...
O final do conto é surpreendente. D. Clotilde, a mulher do Coronel, presenteia D. Joana, esposa do falecido Chico, com a cobiçada lata repleta de moedas:
“Disse que tinha aí uns trezentos mil réis. Uma ajuda pra senhora...”

7. Macambira
Outra excelente narrativa do livro. Trata da clássica temática da seca e da agonia que acarreta ao sertanejo. Fala da solidão e determinação do decadente Coronel Firmo, sua viuvez e desamparo, sozinho, na companhia apenas da negra Raimunda. Seus dois filhos vivem na capital. Oferecem dinheiro, mas o velho recusa:
− Perdi a Amélia, meus meninos estão na grandeza, no Sul. Oferecem até esmola. Não conhecem o pai...
Vez por outra chama o nome da falecida esposa:
− Amélia!
Descobriu logo o engano e mudou o grito:
− Raimunda, o café, Raimunda.
São muitos os pretendentes da fazenda, e acreditam que o coronel Firmo está acabado:
− Todo o mundo anda vendendo o gado. Este ano parece que também não chove. Vai ser igual ao setenta e sete... Eu compro, seu Firmo.
− A seca está braba, mas de ver coisa feia já criei casca grossa.  Não me enverguei no quinze nem no dezenove.
− O senhor era mais moço, seu Firmo.
− Conheço muito moço frouxo. Ainda não morri.
Muito humilhado pela situação, um dia o Coronel acorda com o aviso da negra Raimunda:
− Seu Firmo, tá trovejando. O senhor ouviu?
Finalmente, a chuva vem batizar a terra e lavar a honra de um homem que se recusara a entregar os pontos.
− Um homem não se dobra, Berto. Nem quando perde a mulher.

8. O padrinho
Uma história de submissão, conformismo e humilhação. A má divisão da renda, o favoritismo de alguns e a resignada pobreza de outros. Ritinha, a filha de Pedro, adoece no meio da noite. Pedro é instigado por Mundica, a esposa grávida, a procurar ajuda. Primeiramente na casa do Coronel Aparício, padrinho da menina. Com muito receio, Pedro bate à porta, mas recebe a negativa do coronel. Voltasse de dia, aquilo não eram horas. Sem dinheiro nem transporte, Pedro parte no rumo do Trapiá. Bate à porta do seu Henrique, o farmacêutico. Este alega uma antiga dívida de Pedro, mas resolve ceder o remédio, embora a contragosto. Pedro apressa o passo, mas desanima quando avista o movimento na frente de casa. Encontra Mundica sentada sobre o baú, chorando. Volta à casa do Coronel e comunica a morte da menina. O padrinho age friamente:
− Por hoje está dispensado. Mas amanhã termine o serviço.
No final, o leitor é surpreendido com Pedro procurando novamente o coronel Aparício. Encontra-o conversando sobre política. Mal dá atenção ao empregado:
− O que é, Pedro?
− Coronel, a Mundica descansou hoje...
− Menino?
− Menina. A gente deu o mesmo nome da outra... Rita...
− Só isso, Pedro?
− A gente queria convidar o senhor pra padrinho dela...
− Está certo. Avise o batizado... E o serviço da parede do açude?
− Tá pronto, Coronel. Só atrasou por causa da morte da Ritinha...
− Já sei.
Pedro retirou-se satisfeito, o coração pulsando forte.

9. Candeias
A história mais comovente do livro. Mais um caso de tragédia infantil. Todos procuram o corpo de Rafael, moleque peralta, brincalhão, ótimo nadador, mas que se afogara no rio. O que chama a atenção no conto é o sentimento da velha Candoca, com quem Rafael sempre implicara:
− Velha cachimbeira!
Velha Candoca permaneceu na calçada, pitando o seu cachimbo. Aguardava o cortejo. Desde que o marido morrera na cheia de vinte e quatro, nunca mais quisera ver corpo de afogado. Sentiu uma pena infinita do menino Rafael. A rede passaria na sua frente. Levantou-se, guardou o tamborete e foi para a janela. Bateu o fumo do cachimbo no parapeito em sinal de respeito. Sentiu água nos olhos. Nunca mais ouviria a provocação:
− Velha cachimbeira!

10. O Canoeiro
Esta narrativa trata não das secas, mas das cheias que vez por outra inundam as terras sertanejas, fazendo valer o prognóstico do beato que dizia que o sertão viraria mar. O próprio autor, na voz do velho Clemente, reafirma essa sentença: “Quando chove, é desse jeito. O pai morre de sede e o filho morre afogado.” Em tempos de cheia, todos recorrem a Chico Preto, o único canoeiro que se atreve a desafiar o rio. Mesmo à noite, Chico sai a conduzir vidas. Prevalecendo-se de sua coragem, cobra preço acima da média. Seu objetivo é comprar a canoa do finado Anacleto, que está sem uso e oferecida por preço baixo.
− Canoa nova... Transportaria todo um comboio de uma vez.
Chico havia feito a caridade de conduzir, de madrugada, o corpo do falecido Lino, mesmo sabendo que era um homem de posses. De início quis se recusar a fazer a viagem fiado, mas comovido, decidiu não cobrar nada. A mulher do falecido ficou muito agradecida:
− Meu filho vem lhe agradecer, seu Chico. Deus, Nosso Senhor, tá vendo sua ação.
Mas, depois da cheia, Chico Preto é boicotado pela população, que só procura os préstimos de Laurindo, Romualdo e Jacinto. Comentou para a mulher. Estavam fugindo dele, não sabia o motivo.
− É porque diz que tu é careiro, Chico. Diz que tu meteu a unha na enchente.
Um dia, sentado no alpendre, Chico recebe a visita inesperada do filho do finado Lino:
− Seu Chico, vim lhe agradecer e pagar o seu serviço.
− Fiz o serviço de graça, moço. Eu disse pra sua mãe. Palavra é palavra.
O homem descobre o desejo de Chico, adquirir a canoa do finado Anacleto, e empresta-lhe o dinheiro.
− Mas, seu moço, só lhe posso pagar um tico em cada inverno...
− Importa, não. Espero.
História de caridade e gratidão. Nela, inúmeros personagens de contos anteriores reaparecem, entre eles o Come Gato, reforçando a tese de que já falamos sobre a unidade do livro. É um caso de narrativa circular, pois início e final se interligam.

11. Ventania
Eis o exemplo de um conto aberto. O velho e poderoso Aristides recebe a notícia de que doutor Tancredo, seu vizinho, está interessado em comprar por bom preço uma parte imprestável de suas terras (Cerrado). A intenção era inundá-las e beneficiar a todos sem distinção. Mas o velho Aristides prefere perder o gado a ceder o espaço. Apega-se a um juazeiro, árvore antiga, para desviar o negócio:
− No meu juazeiro ninguém bole, Sabino.
Todos acham que é apenas questão de opinião do velho ou mera caduquice. Eram boas as intenções do doutor Tancredo.
O velho Aristides amanhece morto na rede. Dona Teresa, sua esposa, se depara com a solidão do casarão e resolve mudar-se para a casa de uma sobrinha, no Trapiá. Acaba cedendo às insistentes propostas do vizinho e vende a terra. O juazeiro, a despeito da opinião do finado Aristides, será sacrificado. No momento da derrubada, a surpresa: os trabalhadores Zé de Góis e Mundoca acertam com as ferramentas uma superfície dura, logo abaixo da raiz do juazeiro. Resolvem investigar. Encontram uma mala de ferro com o nome Aristides na tampa. No momento de abri-la, avistam o encarregado da obra e enterram imediatamente a mala. O resto fica por conta da imaginação do leitor. O que haveria dentro da mala de ferro? O autor não dá pistas, convidando o leitor a interagir na narrativa

PS.: Texto escrito originalmente para os alunos do pré-vestibular da escola Educar SESC Fortaleza, o que justifica os (sempre injustificáveis) resumos das obras.