26/07/2010

TRAPIÁ - Caio Porfírio Carneiro




Por Carlos Vazconcelos
Publicado pela primeira vez em 1961, Trapiá é um livro de contos com estética próxima à novela, pois os personagens e o ambiente são recorrentes e as temáticas se interligam, dando unidade ao volume. As histórias se desenrolam na cidade de Trapiá e seus arredores: Taimbé, Pitombeira, Coités. Esta obra de estréia de Caio Porfírio Carneiro é regionalista desde o título (de pé de trapiá; trapiazeiro). Não no sentido reducionista, mas no que se refere aos tipos, ambientes e costumes de uma dada região do Nordeste do Brasil. É, não obstante, respaldada no princípio de toda grande literatura, ou seja, nos seres humanos e seus dramas diários, suas vicissitudes, suas artimanhas. Espelham as vivências do autor na fazenda Pau Caído, interior do Ceará. Cada um dos onze contos é obra-prima à parte. Cada palavra no seu devido lugar, não sobram arestas, os diálogos são bem colocados, há grande riqueza de expressões interioranas: pescoço escangotado, areando talher, meter os pés, canelau, coração desembestado, e tantas outras.
O autor inicia com o apêndice Como nasceu Trapiá (não a obra, mas o lugarejo): Um dia apareceram uns retirantes, dizem que vindos de Pernambuco, e armaram uma venda ao pé do trapiazeiro. (...) Negra velha Aparecida conta uma história desconforme: a árvore se encantara. Para o violeiro Zé de Melo, ela fora derrubada a mando do vigário do Coité, para levantar uma capela. (...) Assim veio ao mundo a Vila do Trapiá.
Nas narrativas de Trapiá predominam os diálogos, sempre muito bem engendrados. É presença constante o universo infantil, vítima de pequenos dramas ou de grandes tragédias, em contraponto ao mundo dos adultos, recheado de normas, costumes e leis próprias. Enfim, Trapiá é um fiel testemunho da civilização do sertão. Não um sertão demarcado no tempo e no espaço, mas um sertão perene, que sempre existirá enquanto houver tradições literárias como a de Caio Porfírio Carneiro.

ANÁLISE INDIVIDUAL DOS 11 CONTOS
1. Milho Empendoado
Há um quê de contestação neste conto, uma disfarçada denúncia da milenar contenda entre o explorado e o explorador. Há também a sabedoria do sertanejo. Chico começa a roubar as galinhas do coronel Camilo, seu patrão. O objetivo é fazer a canja para a Maria, a esposa que se encontra de resguardo. Contestado pela sogra, Chico se justifica:
Ele está lá, no bem bom (...) Não estou roubando. É precisão, você sabe...
Coronel Camilo, pressionado pela esposa, Rita, resolve solucionar o caso com a rara sabedoria do homem sertanejo, poderoso, mas que prefere dissolver pacificamente os pequenos conflitos.
− Tem gente metendo a mão no galinheiro, Chico.
− Não é raposa, Coronel?
− Que raposa, homem. Aqui lá tem raposa! Quero que você dê uma pastorada.
Chico ainda tentou repetir o roubo, mas não se sentiu seguro. Instigado pela sogra e pela mulher, convida o Coronel para ser padrinho do recém-nascido. O coronel aceita e pergunta de supetão:
− E as galinhas, Chico. Nem sinal do guabiru, hein?
− Não vi ninguém, Coronel...
A sós com a velha Rita, o Coronel explica:
− A gente dá fim a guabiru, Rita, é mandando ele correr atrás do ladrão.

2. O Pato do Lilico
História de injustiça e autoritarismo. Outra forma de poder, o do adulto sobre a criança. Lilico vai à feira de Coité com o austero pai (Quando o chamava era aos gritos, por qualquer besteira soltava o berro.) Lilico quase nem pregou os olhos, pensando no passeio (Viu a cidade e se esqueceu do sol, do sono e da sede.) Era véspera de Natal. A meninada da cidade brincava, cada brinquedo que era uma maravilha.
− Tava vendo aquele brinquedo, pai...
− Te trouxe foi pra isso?
O brinquedo que mais encantou Lilico foi o pato que pulava e andava.
− Tu nunca viu pato, menino?
O pai deixa o menino comendo rapadura, pastorando os grajaús com coco e sal. Empolgado com os brinquedos, Lilico se aproxima da meninada da cidade, mas é rachaçado. O homem bem vestido, charuto no queixo, percebe a desolação do menino e o leva à loja:
− Você quer um brinquedo desse, garoto?
Dentro da loja, o menino toma um susto com a figura do Papai Noel, a barba branca, muito comprida. Segurou o brinquedo e saiu caminhando de costas, sem acreditar. Ao voltar, não encontrou os grajaús. O pai aparece indignado pela desobediência do filho e entende que o brinquedo foi fruto de roubo. Por mais que o menino se explicasse ele não se convencia.
− Pai...
− Eu te racho de peia, peste.
Para maior desespero, o pai pisa o brinquedo e atira o resto no lixo. Em casa, a mãe protege o menino da surra, mas também não acredita na versão dele:
− Não faça isso outra vez não, meu filho. Nosso senhor castiga.

3. O Gavião
Outra vez a temática infantil. O amor de Beto pelos pássaros e a interessante reversão do ódio em amor. Um faminto gavião ameaça a paz da fazenda. Beto se desespera e convoca o pai para dar cabo do possível predador de seu canário de estimação. João Raimundo falha.
− Deixa, Beto. Ele volta.
No dia seguinte, Beto vai alimentar o canário e percebe a gaiola vazia. O gavião não perde a oportunidade e captura o pássaro doméstico. O menino torna a pedir socorro ao pai, que prepara a espingarda, mas falha pela segunda vez. (O gavião ajeitava-se sobre a presa... as bicadas partiam violentas...) A mãe procura consolar o filho:
− Chore não, Betinho. Seu pai lhe dá outro.
Beto se revolta com tamanha injustiça da natureza e passa dias inconsolável. Mas começa a observar a elegância e coragem do gavião e o ódio se converte em admiração. Seu sonho agora é ganhar um gavião. (Não queria mais o canário que viria do Trapiá. Canário dava muito trabalho.)
− Que conversa é essa, Beto?
No dia seguinte, estava lavando o rosto, na cozinha, quando ouviu o tiro:
− Pronto, meu filho. Dei fim ao infeliz.
Beto tomou chegada devagarinho, o bolo subindo para a goela. A ave estremecia, o sangue pintando as penas. Uma beleza de ave, o gavião. Mais bonita que aquela não haveria.
O pai entra, satisfeito, assobiando. Beto fica lá fora, soluçando a morte do seu mais novo objeto de adoração.
4. A Dívida
Acertar contas, lavar a honra, faz parte do código de ética do homem sertanejo e é uma constante na literatura de temática regionalista. Esta terceira narrativa de Trapiá conta o desespero e a fuga, em pleno meio-dia, de um homem que se supõe assassino por haver reagido a uma agressão. Recorre à ajuda do amigo:
− Fiz uma desgraça, Gerardo.
− Mas me conta logo, rapaz. O que foi que você fez?
− Matei o seu Queiroz, na feira do Trapiá.
− Foi uma rixa, Pereira?
− Ele me devia aquele dinheiro, como você sabe... Ele primeiro me xingou. Fiquei no meu canto quieto. Aí ele xingou a Carminha e eu perdi a cabeça...
Gerardo resolve descer à cidade para investigar o caso e pede ajuda do Dr. Soares, candidato da oposição:
− Será que ele dá um jeito?
− Tem que dar. Você não é eleitor dele?
No fim a surpresa. Quando o suposto matador esperava visita do delegado, recebe a notícia do amigo:
− O homem está vivo, Pereira. Tava lá conversando e andando.

5. Come Gato
Um dos momentos mais altos do livro, este conto mostra que nenhum ser é tão desprezível ao ponto de ser subestimado. Come Gato é um mendigo incapaz de reagir aos insultos da molecada, mas com coragem suficiente para assassinar, de peito aberto, o perigoso Tacanha, cabra valentão que, a mando do Coronel Aparício, se atrevera a surrar o Coronel Leocádio. Este, o único homem da cidade que não desprezava o Come Gato, ou melhor, o único homem que, a despeito da própria importância na região, dava-lhe guarida, protegia-o e tratava-o pelo nome de batismo:
− Boa tarde,Olavo.
− Não ligue para isso não, Olavo. Brincadeira de menino.
− Já comeu, Olavo?
− Vá á cozinha e fale com a Guilhermina.
Come Gato, imbuído pelo sentimento de lealdade, caminhou quatro léguas a fim de cometer a vingança silenciosa.
− Mas seu Tacanha, o que vosmecê fez acha que tá direito?
− Veio pra me dizer isso? Quer um ensino, porqueira?
− Vá rezando, seu Tacanha, queu vou lhe despachar...
− Vosmecê fez besteira, seu Tacanha. Em Coronel Leocádio ninguém encosta a mão.
Limpou a faca na roupa da vítima, já quieta, olhos vidrados...
O Coronel, na sala, abraçava os amigos, peito lavado:
− Já vi que tenho amigo nas Contendas. Me disseram que o cabra morreu na porta de casa.

A vida volta à normalidade. A autoria do assassinato continua encoberta. Da esquina, Come Gato avista o Coronel Leocádio na espreguiçadeira:
− Boa tarde, Coronel...
− Boa tarde, Olavo.
− E a meninada, Olavo?
− Importo não, Coronel...
− Já comeu hoje, Olavo? Vá falar com a Guilhermina.
− Com sua licença, Coronel...

6. Mata-pasto
Mais um tácito confronto ente classes, demonstrando-se o eterno abismo entre proprietário e empregado.
O mata-pasto cerrado, dando nos joelhos. Tanto Chico capina quanto o mato volta crescer, favorecido pela estação das chuvas. Coronel Henrique sentencia:
− Este inverno deixo ele crescer. Quero ver até onde vai o mato.
− Faz bem, Coronel.
Chico vê no crescimento do mato a oportunidade que lhe faltava para entrar no casarão, esconder-se atrás do depósito de farinha e se apossar da lata de moedas (Enterraria a lata alguns dias para ninguém desconfiar. Dez anos naquela vida. Trabalhando feito burro sem mãe. Aquele dinheiro iria auxiliá-lo muito.) Disse para a mulher, Joana, que ia viajar para o Trapiá.
Preparou-se para entrar, na calada da noite, mas sentiu antes o espinho no dedão do pé direito. Viu sangue. Uma moleza começou a tomar conta do seu corpo. Levantou-se para espantar a morrinha. A dor subiu para a perna. Tornou a sentar-se. Tentou levantar-se e caiu. A perna dormente. ”Parece que foi cobra.” Ouviu a voz do Coronel ali a poucos metros, a muitos metros, bem perto, muito distante...
− Acho que a Clotilde tem razão. Vou mandar o Chico amanhã corar esse mato. A muriçoca tá demais...
Quando o dia amanheceu, o corpo de Chico estava estirado sobre o capim.
− Eu não dizia, Henrique? Você é maluvido...
− Que diabo foi fazer ali o Chico?...
O final do conto é surpreendente. D. Clotilde, a mulher do Coronel, presenteia D. Joana, esposa do falecido Chico, com a cobiçada lata repleta de moedas:
“Disse que tinha aí uns trezentos mil réis. Uma ajuda pra senhora...”

7. Macambira
Outra excelente narrativa do livro. Trata da clássica temática da seca e da agonia que acarreta ao sertanejo. Fala da solidão e determinação do decadente Coronel Firmo, sua viuvez e desamparo, sozinho, na companhia apenas da negra Raimunda. Seus dois filhos vivem na capital. Oferecem dinheiro, mas o velho recusa:
− Perdi a Amélia, meus meninos estão na grandeza, no Sul. Oferecem até esmola. Não conhecem o pai...
Vez por outra chama o nome da falecida esposa:
− Amélia!
Descobriu logo o engano e mudou o grito:
− Raimunda, o café, Raimunda.
São muitos os pretendentes da fazenda, e acreditam que o coronel Firmo está acabado:
− Todo o mundo anda vendendo o gado. Este ano parece que também não chove. Vai ser igual ao setenta e sete... Eu compro, seu Firmo.
− A seca está braba, mas de ver coisa feia já criei casca grossa.  Não me enverguei no quinze nem no dezenove.
− O senhor era mais moço, seu Firmo.
− Conheço muito moço frouxo. Ainda não morri.
Muito humilhado pela situação, um dia o Coronel acorda com o aviso da negra Raimunda:
− Seu Firmo, tá trovejando. O senhor ouviu?
Finalmente, a chuva vem batizar a terra e lavar a honra de um homem que se recusara a entregar os pontos.
− Um homem não se dobra, Berto. Nem quando perde a mulher.

8. O padrinho
Uma história de submissão, conformismo e humilhação. A má divisão da renda, o favoritismo de alguns e a resignada pobreza de outros. Ritinha, a filha de Pedro, adoece no meio da noite. Pedro é instigado por Mundica, a esposa grávida, a procurar ajuda. Primeiramente na casa do Coronel Aparício, padrinho da menina. Com muito receio, Pedro bate à porta, mas recebe a negativa do coronel. Voltasse de dia, aquilo não eram horas. Sem dinheiro nem transporte, Pedro parte no rumo do Trapiá. Bate à porta do seu Henrique, o farmacêutico. Este alega uma antiga dívida de Pedro, mas resolve ceder o remédio, embora a contragosto. Pedro apressa o passo, mas desanima quando avista o movimento na frente de casa. Encontra Mundica sentada sobre o baú, chorando. Volta à casa do Coronel e comunica a morte da menina. O padrinho age friamente:
− Por hoje está dispensado. Mas amanhã termine o serviço.
No final, o leitor é surpreendido com Pedro procurando novamente o coronel Aparício. Encontra-o conversando sobre política. Mal dá atenção ao empregado:
− O que é, Pedro?
− Coronel, a Mundica descansou hoje...
− Menino?
− Menina. A gente deu o mesmo nome da outra... Rita...
− Só isso, Pedro?
− A gente queria convidar o senhor pra padrinho dela...
− Está certo. Avise o batizado... E o serviço da parede do açude?
− Tá pronto, Coronel. Só atrasou por causa da morte da Ritinha...
− Já sei.
Pedro retirou-se satisfeito, o coração pulsando forte.

9. Candeias
A história mais comovente do livro. Mais um caso de tragédia infantil. Todos procuram o corpo de Rafael, moleque peralta, brincalhão, ótimo nadador, mas que se afogara no rio. O que chama a atenção no conto é o sentimento da velha Candoca, com quem Rafael sempre implicara:
− Velha cachimbeira!
Velha Candoca permaneceu na calçada, pitando o seu cachimbo. Aguardava o cortejo. Desde que o marido morrera na cheia de vinte e quatro, nunca mais quisera ver corpo de afogado. Sentiu uma pena infinita do menino Rafael. A rede passaria na sua frente. Levantou-se, guardou o tamborete e foi para a janela. Bateu o fumo do cachimbo no parapeito em sinal de respeito. Sentiu água nos olhos. Nunca mais ouviria a provocação:
− Velha cachimbeira!

10. O Canoeiro
Esta narrativa trata não das secas, mas das cheias que vez por outra inundam as terras sertanejas, fazendo valer o prognóstico do beato que dizia que o sertão viraria mar. O próprio autor, na voz do velho Clemente, reafirma essa sentença: “Quando chove, é desse jeito. O pai morre de sede e o filho morre afogado.” Em tempos de cheia, todos recorrem a Chico Preto, o único canoeiro que se atreve a desafiar o rio. Mesmo à noite, Chico sai a conduzir vidas. Prevalecendo-se de sua coragem, cobra preço acima da média. Seu objetivo é comprar a canoa do finado Anacleto, que está sem uso e oferecida por preço baixo.
− Canoa nova... Transportaria todo um comboio de uma vez.
Chico havia feito a caridade de conduzir, de madrugada, o corpo do falecido Lino, mesmo sabendo que era um homem de posses. De início quis se recusar a fazer a viagem fiado, mas comovido, decidiu não cobrar nada. A mulher do falecido ficou muito agradecida:
− Meu filho vem lhe agradecer, seu Chico. Deus, Nosso Senhor, tá vendo sua ação.
Mas, depois da cheia, Chico Preto é boicotado pela população, que só procura os préstimos de Laurindo, Romualdo e Jacinto. Comentou para a mulher. Estavam fugindo dele, não sabia o motivo.
− É porque diz que tu é careiro, Chico. Diz que tu meteu a unha na enchente.
Um dia, sentado no alpendre, Chico recebe a visita inesperada do filho do finado Lino:
− Seu Chico, vim lhe agradecer e pagar o seu serviço.
− Fiz o serviço de graça, moço. Eu disse pra sua mãe. Palavra é palavra.
O homem descobre o desejo de Chico, adquirir a canoa do finado Anacleto, e empresta-lhe o dinheiro.
− Mas, seu moço, só lhe posso pagar um tico em cada inverno...
− Importa, não. Espero.
História de caridade e gratidão. Nela, inúmeros personagens de contos anteriores reaparecem, entre eles o Come Gato, reforçando a tese de que já falamos sobre a unidade do livro. É um caso de narrativa circular, pois início e final se interligam.

11. Ventania
Eis o exemplo de um conto aberto. O velho e poderoso Aristides recebe a notícia de que doutor Tancredo, seu vizinho, está interessado em comprar por bom preço uma parte imprestável de suas terras (Cerrado). A intenção era inundá-las e beneficiar a todos sem distinção. Mas o velho Aristides prefere perder o gado a ceder o espaço. Apega-se a um juazeiro, árvore antiga, para desviar o negócio:
− No meu juazeiro ninguém bole, Sabino.
Todos acham que é apenas questão de opinião do velho ou mera caduquice. Eram boas as intenções do doutor Tancredo.
O velho Aristides amanhece morto na rede. Dona Teresa, sua esposa, se depara com a solidão do casarão e resolve mudar-se para a casa de uma sobrinha, no Trapiá. Acaba cedendo às insistentes propostas do vizinho e vende a terra. O juazeiro, a despeito da opinião do finado Aristides, será sacrificado. No momento da derrubada, a surpresa: os trabalhadores Zé de Góis e Mundoca acertam com as ferramentas uma superfície dura, logo abaixo da raiz do juazeiro. Resolvem investigar. Encontram uma mala de ferro com o nome Aristides na tampa. No momento de abri-la, avistam o encarregado da obra e enterram imediatamente a mala. O resto fica por conta da imaginação do leitor. O que haveria dentro da mala de ferro? O autor não dá pistas, convidando o leitor a interagir na narrativa

PS.: Texto escrito originalmente para os alunos do pré-vestibular da escola Educar SESC Fortaleza, o que justifica os (sempre injustificáveis) resumos das obras.

13/04/2010

Está lançada a palavra





Por Carlos Vazconcelos

Frederico Régis detém a engenharia dos espíritos inquietos. Sua poética é feita de minutas porque jamais será o poeta oficial, sua matéria é o caos. Seu improviso é certeiro. Sua poesia é uma brincadeira tão séria quanto soltar arraias no quintal da infância. Brincar de buscar o infinito sem perder o fio da meada. Essa poesia dormita com um punhal numa mão e um lírio na lapela. São muitos os seus refrãos. Ele labora (não disse elabora) seus versos sem fôrmas, sem moldes, múltiplos, polifônicos porque o tempo e o espaço são mesmo muito imprecisos. Não será nunca um burocrata da palavra. Quando se faz reticente é para ser mais claro, ou clarividente, pois acredita que o silêncio é sinfonia ou ambiente propício para todas as melodias. Felizmente sua lógica é caótica. Sua imprecisão é preciosa para nos conduzir pelos meandros da cidade indecifrável. Não espere mapa. É um viajante, um passageiro de cúmulos, um tripulante à deriva feito todo poeta que preza a dor e o delírio.


Minutas do Caos é poesia desde o título. Frede é rico, contabiliza recursos poéticos. Frederico rege uma orquestra. Frederico Régis tem largo tirocínio no campo das letras, cultivando sempre a despretensão de ser poeta, ou de poeta ser sem pretender, pré-ocupado com as dores do mundo, as insignificâncias da alma, os melindres do cotidiano. Trago a insuportável poesia/que não ampara. Extravasa, reverbera, reivindica, protesta e sabe calar quando quer dizer. Compreende que o poeta não pode ir além da poesia. Não interroga o mundo porque desconfia que não obterá resposta. Prefere o caos. Escreve minutas poéticas para não cruzar os braços diante da esfinge.


Está lançada a palavra, a queixa, a confissão, o medo, o prazer, a indignação. O poeta presta contas consigo mesmo e finaliza dizendo: Meu corpo ficará sentado/sozinho no coliseu/o primeiro que chegar/pode tomá-lo como seu. Eis o destino dos livros. Felizes os que os encontram.

21/03/2010

O TUDO QUE EU CONTO

por Carlos Vazconcelos

...não narrei nada à toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Esse fraseado de Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas, bem serviria de epígrafe para o livro Fins d’águas, de Genuino Sales. Nem tirar nem pôr. Consistiria em pecado, assim como nas Sagradas Escrituras. Não se muda um til. A escrita é límpida porque oriunda de mãos artesãs, com vasto tirocínio nos meandros da palavra. Esse envolvente livro é o sertão contado em miúdos. Sente-se o cheiro da terra como nas canções de Gonzaga e Humberto Teixeira.
Fins d’águas é livro de hoje e de amanhã. De hoje, pela atualidade da concepção, da tessitura, e é póstero pelo registro sutil, mas vigoroso do universo sertanejo, pelo testemunho humano e testamento lingüístico. Trabalha no campo da tradição. É documento de memória, legado fundamental para o acervo do inolvidável. Se o autor não engendra palavras, feito Guimarães Rosa, prima por incorporá-las à memória coletiva e resguardá-las das intempéries.
O livro é telúrico, mas com um teor profundo de universalidade que só os grandes mestres são capazes de conceber. De suas páginas jorra um manancial de palavras e expressões genuinamente nordestinas. Não cabe aqui a obsoleta discussão regional x universal. O autor é consciente do seu testemunho (quase dizia protesto), não se rende a facilidades, prefere os valores superlativos. Não que tenha a deliberada intenção do combate, da ruptura contra a cultura globalizada (não é do seu feitio), mas simplesmente detém a plena vocação para o telúrico (e isto não é pouco), provando que sertão é (mesmo) dentro da gente. Fosse essa prosa lançada em plena geração de 30, estaria consagrada aos altos píncaros. Sendo lançada hoje, não é tardia, mas reabilitadora de um universo real, autêntico, co-existente com a cultura massificada.
Fins d’águas é obra fotográfica, não pela gratuidade descritiva, mas pela arquitetura minuciosa do ambiente regional e seu folclore, que impregna a memória ou o imaginário do leitor.
Genuino Sales transpõe para o papel a dicção inconfundível do exímio contador de causos que é, e adiciona a este predicado o estilo primoroso, esmerado, sem deixar de ser espontâneo.
A sensualidade empresta leve tempero a várias das narrativas (...os peitos vazavam do corpete e mostravam-se no busto como duas peças milagrosamente torneadas, com bicos morenos endurecidos pelo contacto da brisa.) O erótico e o humorístico se revezam, às vezes até se misturam, como no final do conto Nanico. A galeria de tipos talhada com precisão atesta a medida humana da obra. A violência, a religiosidade, o sobrenatural, o lírico, definem a tônica desse universo fantasticamente real que é o sertão. O sertão de Rosa, de Rachel, de Graciliano, o sertão genuíno. Podemos terminar como iniciamos, dando voz ao Riobaldo: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.

06/03/2010

O Vermelho e o Simples (Dois livros de Henrique Beltrão)



Por Carlos Vazconcelos

Faz de conta que era uma vez/
Nós fomos felizes para sempre.
(in Vermelho, p. 73)

A poesia de Henrique Beltrão é antes de tudo afeto, é o que pulsa no coração e ressoa na alma. Tudo dito com naturalidade. Daí os títulos Vermelho (leia-se à flor da pele) e Simples (leia-se translúcido). A ele só interessa cantar a essência poética, sem preocupações profundas com as formalidades que arruínam tantas intenções. Sua engenharia é simples sem ser simplória. Dialoga com músicos, sábios e múltiplos poetas, principalmente Vinícius: As rimas suas me banham a pele,/a língua sua é a mesma minha. Ele próprio não é apenas um poeta, mas um discípulo da poesia, com tudo o que nela há de humano e divino. Assim como Quintana, sabe que fora da poesia não há salvação. O fazer poético é sua oração, poesia nossa que estais em nós,/ pronunciado seja o vosso nome. Adverte, ainda: Se não houver música e poesia,/ao meu enterro eu não compareço. E sai destilando versos feito quem abre gaiolas. Tenta reter a vida para ganhar asas. A poesia é seu abrigo e seu horizonte.
Devem-se folhear as páginas dos livros de Beltrão como quem descerra janelas, de par em par, e espera não menos que a simplicidade da brisa, a integridade dos raios de sol, a beleza cotidiana do dia. O poeta passa ao largo dos spleens tão em voga nestes tempos ditos pós-modernos. Para ele poesia é celebração, de si, do outro, do mundo de fora e de dentro. Então construí um poema de vidro./Se o puseres ao sol verás a riqueza de suas matizes. Sua poesia é variada e delicada, o que pode levar o leitor a perceber um teor epicurista nas suas intenções. Ao mesmo tempo, o leitor vai se deparar com segredos subjacentes, que revelam uma boa dose de estoicismo, aprendido com os sábios que o poeta costuma visitar, muito bem exemplificado nos seguintes versos: A vida é um milagre. A morte é uma benção/para desfrutarmos do milagre./A morte nos grita: Viva! Viva bem. Um poeta nunca é uno, todo poeta é diverso. Vermelho e Simples são multicoloridos.
Beltrão não quer a poesia apenas para si, divide, soma, multiplica, semeia versos com alegria pela cidade inteira. A minha vida é toda pautada/na palavra e na interação com o outro. Mas o menestrel vai-se embora, vai se ausentar do corpo físico da cidade-namorada, embora saibamos que não há intervalo para o estado poético. Ele levará seus tesouros: a amada, o mar, o bar, o ar de Fortaleza. Voltará ainda mais rico, voltará ainda mais lírico dessa travessia.   
Mora no reino das palavras, mas justamente lá sabe encontrar o mestre silêncio: Nos meus pensamentos há silêncios de catedrais à meia-noite. Beltrão é um poeta que não perde a esperança. E sabe reparti-la com seus leitores.

O poeta é feito da sua gente.
Seus versos são filhos do seu lugar.
(in Simples, p. 81)

01/03/2010

Eco no Labirinto

-->Por Carlos Vazconcelos

Inicia-se o ano de 2006. Surpreendo-me lendo o romance O Nome da Rosa, do italiano Umberto Eco, num momento em que só aumenta, nas livrarias e bibliotecas, a procissão em busca do Código da Vinci, de Dan Brown.
Às vezes ando mesmo na contramão. E tenho manias muito pessoais: visitar cemitério em dias comuns, que não o de finados; preferir os templos vazios, às missas ou cultos; cascavilhar nas locadoras de vídeo não os lançamentos, mas os clássicos... Ler o Eco, em vez do Brown?
Na verdade, tentei ler O Nome da Rosa em 1991. Desci à biblioteca, abracei o livro e me dispus a decifrá-lo. Já adiantado na leitura, foi com decepção que verifiquei faltarem trinta páginas do volume. Devolvi-o à prateleira, assisti ao filme mais de uma vez e nunca mais quis saber do calhamaço.
Talvez eu demore quinze anos para decidir ler O Código da Vinci... e Anjos e Demônios... e Fortaleza Digital... Existem modismos, mesmo em literatura... Não sou obrigado a segui-los. Sou anacrônico. Não pela vaidade de ser. Mas por que nossa geração está cada vez mais ávida por novidades? Vivemos a era do descartável. A música de hoje não sobreviverá amanhã. Os derradeiros quintais deverão ser demolidos para os arranha-céus florescerem. As estrelas que se apaguem para a sobrevivência do neon. Hoje leio Eco, mas deveria ler Brown?
A edição (33ª) que tive em mãos era de 1991. Não havemos de nos assustar com tantas reedições, pois o livro de estréia de Eco foi realmente um êxito de vendas no mundo inteiro, um “sucesso unânime de crítica e público”, como veio anunciado na própria capa. Um best-seller (atente-se para a ambigüidade que essa expressão traduz).
O autor dialoga com o escritor inglês Conan Doyle, estabelecendo referências explícitas ao personagem Sherlock Holmes. O “herói” da narrativa é Guilherme de Baskerville (primeira referência óbvia), um investigador cerebral, capaz de deduzir com acerto o que não viu. Lógico, exato, cartesiano, politicamente correto e de fina ironia. No cinema, nenhum outro ator poderia encarná-lo melhor do que Sean Connery. Perfeito. Aliás, justiça seja feita, o filme (dirigido por Jean Jacques-Annaud) é uma obra-prima à parte. O parceiro de Guilherme é o noviço Adso, espécie de Watson, que vive os acontecimentos junto ao mestre e também se responsabiliza de narrá-lo à posteridade. O leitor encontrará apenas uma vez o epíteto consagrado: Elementar, meu caro Adso (Watson), embora ele haja se popularizado sem aparecer na obra original de Doyle.
A história é uma espécie de policial noir. Crimes misteriosos, insinuações eróticas, traições, cujo cenário é um mosteiro medieval da velha Itália. O livro é carregado de erudição (como não poderia deixar de ser, em se tratando de Umberto Eco), mas tem como leitmotiv a desmistificação religiosa, a denúncia da hipocrisia ocultada por trás dos hábitos, e principalmente, o fanatismo superando qualquer outro sentimento, inclusive o de Deus. Não seria justo negar que, em alguns momentos, o ritmo da narrativa é arrastado, monótono, bastante enfadonho, com incansáveis citações latinas e erudição escorrendo pelo ladrão. Algumas páginas parecem até desnecessárias para um enredo brilhante. Mas isso não ocorre também no Crime e Castigo, de Dostoiévski? No Guerra e Paz, de Tolstói? N’O Corcunda de Notre Dame, de Vítor Hugo? Não seria essa característica própria dos romances destinados a serem clássicos? Ou seriam prolixidades de estreante? Pensa-se até em desistir, mas a curiosidade é maior. Por que tantos crimes no ambiente sacrossanto? Onde há o crime deve haver o criminoso. Instala-se o suspense. 
Eco vai nos levando pelos labirintos do mosteiro, e das naturezas humanas, e da biblioteca, ponto crucial de toda a trama. Lá está Jorge de Burgos, personagem inspirado na figura de Jorge Luís Borges. O cego e seu labirinto. O minotauro à espreita... A biblioteca é um grande labirinto, signo do labirinto do mundo. Entras e não sabes se sairás.” (Eco, p.187). O labirinto é o símbolo mais evidente de estar perdido. (Borges).
O próprio enredo labiríntico da obra é intertextualidade. Dialoga com o conto A Biblioteca de Babilônia, de Borges. Eco valida o conceito do velho mestre de que livros podem nascer de livros, literaturas podem derivar de literaturas. Outro gênio, nosso Machado de Assis, também sabia estabelecer a perfeita diferença entre a recriação e a mera imitação.
Ah, e quanto ao título? A leitura não torna explícito. Que rosa? O conhecimento, a sabedoria, o sagrado...? Aí começa o mistério. O autor é semiólogo, homem preocupado com a representação dos signos. Possivelmente, o título foi inspirado em um dos versos de Romeu e Julieta: O que há em um nome? O que chamamos rosa cheiraria tão docemente com qualquer outro nome... Isto reforça ainda uma vez a tese da intertextualidade
Eco nos conduz às conseqüências do fanatismo, fio tenro entre a razão e a loucura. No fim, resta-nos a lição de cinco linhas apresentada em mais de quinhentas e sessenta páginas:
Teme, Adso, os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo, freqüentemente antes de si, às vezes em seu lugar. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.   
Em suma: Foge do presunçoso que detém a verdade absoluta.
Fica a pergunta: Ler ou não ler O Nome da Rosa? Aos mais exigentes, sim. Aos imediatistas, vejam o filme. Mas não esqueçam: a obra literária sempre superará qualquer adaptação, mesmo as superproduções cinematográficas. Ora, quem dera pudéssemos ler os clássicos sempre nos idiomas originais. Ah, quem dera! 


28/02/2010

Os livros, as viagens


Por Carlos Vazconcelos 

Todos dizem que ler é viajar. Isso é fato consumado, mesmo na opinião de quem nada lê. Ler Josué Montello, por exemplo, é transportar-se para o Maranhão. Jorge Amado nos leva à Bahia. Com Machado, retrocedemos ao velho Rio de Janeiro imperial (e às profundezas da alma humana). João Guimarães, Graciliano e Rachel nos conduzem a uma pátria chamada Sertão.
E assim segue o leitor, nas mais variadas e pitorescas aventuras, turismo espiritual. Desse modo, quem tem boa biblioteca possui de saldo uma agência turística virtual, sem os protocolos e a burocracia das convencionais.

Pois estive viajando, esses dias. Li Érico Veríssimo e viajei ao México...
– Ao México, tchê?
Sim, senhor! E de trem. Mas tudo bem, compreendo a estranheza. Quem lê Veríssimo viaja não é para os pampas? E escuta aquela música ao longe (talvez um solo de clarineta), vinda do tempo e do vento, que varre os lírios do campo pelos caminhos cruzados?
Floreios à parte, explicarei melhor. Estou me deleitando com a leitura do livro intitulado México, do escritor gaúcho. É daqueles livros injustamente esquecidos. Como se dizia antigamente, o lado B do long play. São notas de viagem, testemunhos de vida, capítulos de humanidade de um escritor que, ao sentir-se sufocado pela vida diplomática, em Washington, consumido pelo desejo de umas férias, chega em casa e sugere à mulher:
– Vamos ao México?
Esse bem poderia ser o título do livro, pois realmente o convite se estende ao leitor. Qualquer um o aceitará prontamente depois de ler o Prólogo, onde o autor trava um delicioso colóquio com o mestre William Shakespeare em torno das razões que o aliciam a arredar pé da metrópole americana. Lá, tudo funciona direitinho, um modelo de organização, um primor de urbanismo. E sentindo-se um gato preto em campo de neve, desabafa ainda: Sinto saudade da desordem latino-americana, das imagens, sons e cheiros de nosso mundinho em que o relógio é apenas um elemento decorativo e o tempo, assunto de poesia.
Sempre em que se tratar de um grande autor, devemos dispensar um pouco mais de atenção a alguns livros considerados menores. Um grande escritor é multifacetado e dificilmente sua pena admite um rótulo impostor.
Para uma grande pena, não existe literatura amena. Exemplo: na consagrada obra machadiana, não esqueçamos jamais de ler O Alienista.
Com tantas investidas assediantes em torno de Gabriela ou Tieta, alguém se lembrará de ler Terras do Sem-fim, de Jorge Amado, talvez o seu melhor romance?
Da vasta bibliografia de Érico Veríssimo, num cantinho escuso de prateleira, achamos o México, a paisagem do México, o sentimento do México.
Viaje! Não perca tempo! Vá à biblioteca ou livraria mais próxima, solicite seu livro. E quando puder (não desaconselho) solicite também seu passaporte. Você viajará com conhecimento de causa.
Aproveite as palavras veríssimas do mestre Érico: A vida não merece bocejos.
E hasta la vista!